Estratégia de Espantalho.

Provavelmente já fazem alguns dias desde que Stellae e Wilhelm então na Terra, e o lugar pode ser um pouco nostálgico para a espiã por conta de seu passado misterioso. Ainda que ela já seja uma jovem adulta independente, a sombra de sua criação nada comum pode lhe afetar dependendo do poder de sua vontade.

Ainda que tenha sido resgatada do orfanato, ela não sabe ao certo quem é a entidade que o fez. Não são todos que resgatam um monte de crianças e as treinam para se tornar potentes espiãs - e é ainda mais difícil conseguir uma adoção em massa como aquela por meios legais (o que leva a entender que esse não foi o caso).

Uma sequência de flashes esbranquiçados são experimentados pela garota. Algo incerto, quase como um sonho. De repente, uma voz.

Seu corpo estava intacto, sentia-se presa em algo e seus pensamentos e perguntas estavam dispersos demais e difíceis de discernir em sua cabeça, tudo parecia diferente e ao mesmo tempo, lhe trazia uma sensação que há muito tempo se esforçava para nunca mais senti-la; a saudade dos pais, pessoas que lhe confortavam nos piores momentos. A voz que surgira lhe parecia familiar e a pertubava, nem sequer conseguia se pronunciar.
Seus sentidos a acompanhavam, podia sentir cada uma com intensidade, sua visão oscilava, depois de alguns segundos já era o bastante para conseguir observar o cenário que estava, apenas iluminado por velas e o cheiro forte e inconfundível de vinho penetrava em suas narinas.
Apesar de assustada, mantia cautela para não derrubar a pistola que segurava enquanto franzia o punho canhoto, tentando livrar-se dali.
— Por que eu estou aqui? Numa... adega? E-eu acho que conheço você. — Sua voz falhou em meio a respiração ofegante. — Por que me prendeu aqui, infeliz?

A voz diminuira de tom, ciente de que não poderia ser vista e estava vulnerável, já que amarrada, mas havia a exceção da arma, poderia ouvir passos, vozes e outros sons vindo de proximidades, inclusive, podia sentir o cheiro de sangue que escorria até seus pés.
Procurou se acalmar, esforçando-se pra controlar o ritmo da sua respiração enquanto pensava numa maneira de soltar-se. Quando ouvira a palavra "amado" parecia aumentar a preocupação de fugir dali.
— Puta merda, eu... eu... tenho que sair desse lugar agora. Eu tenho que ver o Willie.
Seus olhos se fecharam por um instante, até que pudesse pensar no mínimo; ir até a porta e fechá-la.
A ponta das botas sustentavam apenas um pé da cadeira, girando-a até a direção da porta de pé em pé afim de não ou quase não fazer qualquer barulho sequer.

Apesar da habilidade de Stellae em manter seus movimentos silenciosos, o mínimo barulho é suficiente para chamar a atenção de um simples mordomo que caminhava ao redor. Seu 20 natural instinto não o engana: há alguém na adega, e não deveria haver.

Não seria a primeira vez que um convidado de seu senhor invade os aposentos para tentar tirar algo de sua caríssima coleção de vinhos, então também não seria a primeira vez que lidaria com tal incômodo. Com tato e delicadeza, ele aproxima-se da porta sem ainda invadir o local.

— Têm alguém aí? Se houver, por favor, peço que se retire antes que eu precise chamar o senhor O'Neal.

Mal sabe o humilde mordomo que seu senhor que o emprega há tantos anos está morto aos pés de Stellae.

Stellae permaneceu em silêncio e se inclinou em direção às velas, assoprando-as para deixar o ambiente mais escuro e assim, não ser percebida pelo mordomo do homem, ela supôs, pelo jeito formal que falava.
Aproximou os lábios de uma das cordas que apertavam seus punhos, mordendo-as com toda a foça que lhe era capaz pra soltar-las e antes que o empregado adentrasse a adega e por sua sorte — ou azar — acabar encontrando o corpo, iria fazer o possível para não ter que matar. Mais um. A destra estava direcionada para a porta, caso seu plano fosse água abaixo. Por precaução, ativou a manopla e antes de qualquer outra ação, seu corpo se tornou invisível.

Ainda com a ausência de respostas, é tarde demais para enganar o mordomo. Ele sabe que há alguém ali, dentro daquela sala e junto aos vinhos de seu patrão. O homem nota a mudança na iluminação de dentro da adega através das frestas da porta fechada, o que torna tudo ainda mais suspeito. Em todas as tentativas de furto com as quais teve que lidar, nenhuma jamais passou daquele ponto. Geralmente na primeira tentativa os ladrões se frustravam e saiam pela porta envergonhados enquanto diziam alguma desculpa pronta, como "estava só procurando o banheiro".

A mão direita do mordomo alcança a maçaneta mas, assim que começa a girá-la, interrompe-se subitamente, como Estellae pode ver em meio a escuridão do outro lado da porta. Talvez com um pouco mais de insistência, quem quer que estivesse lá dentro sairia por conta própria e ele não teria que incomodar o seu senhor, que poderia ficar estressado e causar uma situação desagradável, principalmente diante de tantos presentes.

— P-por favor, se não deixar essa adega logo terei que entrar eu mesmo. — O tom de voz do mordomo é preocupado, e ele tenta manter-se educado até numa provável situação de roubo dos caríssimos pertences de seu senhor.

Ok, eu tenho que sair daqui e de qualquer forma eu vou ter que dar um jeito nesse guarda.

Aproveitara que não estava visível e o escuro lhe favorecia para arrastar o corpo lentamente até um dos cantos da adega, com a destra, delineando um caminho com a marca de sangue e que "poderia" até ser confundida com o vinho, a pistola ainda estava direcionada a porta.
Após deixar o corpo estirado no canto atrás dos depósitos da bebida, as oportunidades de sossegar o guarda eram bem mais visíveis.
Os passos lentos atravessaram a sala às costas da porta, já que era bem provável que o mordomo entrasse ali, do tipo de quem faz bem o seu trabalho. Ela também faria.
Uma de suas mãos alcançara uma das garrafas, e segurou-a de prontidão.

O tempo passa, e nenhuma resposta. O homem suspira do outro lado da porta, um pouco receoso pela insistência do possível ladrão em se recusar a sair. Ele não gosta de agir de maneira agressiva e por isso o evita tanto, então sente um filete de suor escorrer pelo lado esquerdo de seu rosto.

— Certo, estou abrindo então. Você não me deixa opções, desculpe.

Ele então hesita por um instante, mas vira a maçaneta da porta de uma vez quando decide fazê-lo. A expressão do homem se fecha ao ver o líquido vermelho espalhado pelo chão, apertando seus olhos para tentar identificar do que aquilo realmente se trata, adentrando a sala sem notar a presença da garota.

Você é bem corajoso.

Era o que precisava, que o mordomo entrasse a sala para checar o local e, sem esperar, a porta fechara lentamente atrás de si e apenas o barulho da tranca fora escutada, a garrafa que segurava firmemente em suas mãos chocou contra a cabeça do homem, canalizando força o suficiente para apenas o deixar inconsciente, e após isso, poderia fazer com que ele não atrapalhasse seus planos.

Com todo o escuro instalado no cômodo, o homem nada vê ao adentrar a sala, buscando pelo ladrão em potencial. Felizmente para Stellae, ele não a nota no primeiro momento e simplesmente não tem tempo de reação quando ela ataca-o na cabeça com a garrafa, pego completamente desprevenido. A colisão da garrafa contra o corpo do mordomo faz com que o mesmo seja lançado ao chão no mesmo instante, desabando. Caso não o segure, mais barulho será feito e a albina poderá acabar chamando ainda mais atenção para si.

O cenário torna-se ainda mais desesperador e sanguinário, embora a pulsação do homem recém atingido ainda possa ser sentida. Uma boa quantidade de sangue sai de sua cabeça machucada, proveniente de um corte visivelmente aberto. Um mar de líquido escarlate acumula-se no assoalho aos poucos, mesclando com o sangue já mais antigo, mas também derramado pela mesma garota.

O mesmo barulho de antes ainda pode ser ouvido, um pouco ao longe. É o som de conversas de diversas pessoas, que continuam falando alto e parecem estar se divertindo em algum salão não muito longe de onde a menina está. Apesar disso, nenhum som de origem próxima pode ser ouvido, e agora que não há mais quem possa a ver por perto, pode reparar no que há do lado de fora do quarto. Um imenso corredor, forrado com um papel de parede refinado e claro, com delicadíssimos detalhes. Ao longo deste, há duas portas e no final do mesmo, é possível ver que ele continua para a direita, mas não o que há mais para lá.