Estrelas do mar - Irmãs Sulivayr

Charlotte já estava prestes a cuspir um sonoro e firme "Mas nem fodendo" quando a venda lhe foi oferecida, mas no mesmo instante seus olhos se cruzaram com os da mãe, sentindo um arrepio por todo o corpo. Estalando a língua, colocou a venda com claro desgosto.

Estava obviamente de mau humor, com braços e pernas cruzados e postura ereta, quase dominante.

Não se dera o trabalho de pensar no que seria o treinamento, e a única coisa que ressoava por sua cabeça eram os frios olhos da mãe.

Algo ruim estava prestes a acontecer, e Charlotte sentia que sua única opção era aceitar aquilo.

Enquanto aproxima-se do banheiro, a velha constantemente varre os arredores com os olhos, analisando a estrutura do castelo e, principalmente, suas mobílias. Fascinada com o local por fazer tempo desde a última vez que visitou um local tão chique, ela prende os olhos em uma pintura por alguns instantes.

Por uma fração de tempo, a anciã parece paralisada e ignora tudo ao seu redor para fixar-se num quadro aleatório. É como se seu corpo estivesse desligado

— Mas e aí menina. — Ela esbraveja, olhando para Sorelle com desdém. — Vamos sair dessa porcaria de castelo ou não? Me falaram pra te ensinar então eu vou te ensinar - mas têm que ser logo, entendeu? Se ficar me enrolando assim eu vou embora e depois não quero nem saber, viu?! Que falta de respeito, logo na primeira aula COM SUA FUTURA CONSELHEIRA você já quer me dar perdido. Essa geração não vale nada, parece que tá tudo maluco. Deve ser alguma coisa na água.

Com sua chuva de reclamações repentinas, a velha sai caminhando por conta própria rumo a saída do castelo, e fulmina Sorelle com os olhos para que a sigo.

— E você me diga bem, sem gracinhas dessa vez: o que você sabe? Vamo, quero saber sobre o que aprendeu porque eu sei que princesa desse reino aqui num é pouca bosta não.

Charlotte é encaminhada para o veículo, no qual passa alguns minutos em silêncio. Nenhum dos empregados que a acompanha estão autorizados a contatá-la, visto que aquele exercício é de suma importância. Por alguns momentos, a princesa passa o tempo privada de visão e de comunicação, o que para uma pessoa de classe social tão elevada pode ser uma novidade.

— Princesa Charlotte. — Pronuncia-se o mordomo enfim. — Perdoe por tudo isso, mas é como manda o protocolo. De qualquer maneira nós estamos chegando.

Ao longe, um barulho alto pode ser ouvido e expressões confusas são manifestadas por parte daqueles que estão dentro do veículo. Por um breve momento sua trajetória para, mas após um rápido burburinho, ele retoma seu caminho. Algo não está certo.

— Caham... senhorita; você por não ser a primogênita, não está destinada a ser a rainha. Sabe então quais são as suas obrigações como princesa?

Charlotte permaneceu imóvel e sem resposta, sequer reagindo com o pedido de desculpas do mordomo. Simplesmente não se importava e não demonstrava amistosidade alguma. Sua única reação foi... a ausência de alguma reação.

Ao menos até que um estrondo surpreendeu todos ali presentes, incluindo a princesa que havia considerado aquilo a gota d'água. Protocolo ou não, não usaria mais aquela venda, por isso retirou-a praticamente no mesmo instante do barulho.

Ignorando a pergunta do mordomo, Charlotte indagou com frieza:

- O que foi isso?

— N-Nós não sabemos, princesa. — O mordomo responde com um semblante assustado, tanto com o evento anormal quanto com a quebra de protocolo do treinamento. — Não nos foi informado sobre isso. Pareceu um estrondo, mas não é aqui no veículo.

Uma imensa quantidade de poeira se acumula ao redor do veículo, e outro estrondo pode ser ouvido ao longe. Não é visível de onde veio, mas está distante.

— P-Peço que coloque a venda novamente. Não tem nada com o que se preocupar, senhorita Charlotte.

No veículo estão com ela dois homens, um motorista e um mordomo. Ambos parecem assustados com a situação e preocupados com a princesa.

Charlotte olhou o mordomo fixamente, com seu olhar frio e afiado, claramente nem um pouco convencida.

- Vocês parecem bem assustados com algo que "eu não preciso me preocupar". - Descruzou os braços, seguindo a direção do barulho através do vidro. Charlotte parecia não estar nem um pouco disposta a colocar a venda novamente.

- Eu não vou colocar. - Verbalizou. - E se sua preocupação é que eu volte antes do treinamento acabar, pense um pouco: Não é possível. Já passamos da metade do caminho, e eu não sou idiota o suficiente para voltar sozinha, especialmente depois do que aconteceu com meu noivo.

Suspirou, novamente se endireitando na poltrona do veículo e adotando a mesma posição anterior.

- Mas já que é algo externo a nós... - Charlotte não parecia convicta dessa opção, mas prosseguiu mesmo assim. - Então acelere.

Ambos os funcionários parecem ainda mais desconfortáveis com o assunto do noivo desaparecido de Charlotte, eles se entreolham por um momento e concordam em não falar sobre isso por se tratar de algo tão delicado. Ainda que saibam que isso virá a tona mais tantas vezes, por hora é melhor manterem-se nos assuntos do que está acontecendo agora e tirar a princesa dali com segurança. 

— N-não vai acontecer nada, princesa. Pode ficar tranquila, logo chegaremos no local do treinamento. — O mordomo tenta tranquilizá-la mais uma vez, alternando seu olhar entre a filha dos chefes e o outro funcionário.

O motorista hesita ao ouvir a ordem da princesa, mas após ponderar algum tempo enquanto mantem o veículo em velocidade reduzida, ele enfim aceita o que ela diz.

— Por favor, certifique-se de que seu cinto de segurança está bem preso, princesa. — Ele diz, antes de acelerar o veículo como a garota havia pedido.

Como esperado, a fumaça é deixada pra trás e o caminho torna-se muito mais rápido até o destino. Através da janela, a albina pode notar que os lugares por onde passam tornam-se cada vez mais desertos e escuros, até que o veículo tem sua velocidade reduzida e enfim para.

O local é ainda mais escuro e não há nada além de formações naturais por perto. O motorista destrava o veículo e o mordomo volta-se à princesa mais uma vez, provavelmente para dar uma nova notícia. 

— S-só podemos vir até aqui com você, princesa Charlotte. Vamos ter que ir, mas voltaremos para te buscar em algumas horas. Gostaria de ter o que explicar sobre a prova, mas não fomos autorizados a falar sobre isso. Desculpe. — Ele pede, descendo do veículo para abrir a porta para que a princesa saia.

Passou o restante da viagem em silêncio, com os olhos atentos.

Chegando no local, sua primeira reação foi um arrepio que fortificou ainda mais seu péssimo pressentimento daquilo. Um local escuro, deserto e distante.

O que diabos sua mãe estava pensando?

Mas era um caminho sem volta - no momento, literalmente, já que sabia que não poderia regressar até que findasse o treinamento.

E a única pessoa mais provável de reagir a tudo aquilo era sua irmã mais velha, que parecia finalmente estar se livrando da venda que a mãe lhe colocara. Seria a maturidade?

Se algo desse errado, Sorelle era sua única aposta.

Depois que os homens se retiraram, quase que imediatamente Charlotte retirou de dentro do obiage uma concha usada como comunicador, a qual cuidadosamente manteve em segredo para que não a forçassem a se livrar daquilo. Naquela situação, preferia não cortar o contato do mundo externo. Tinha poucos contatos, a maioria se limitando apenas à família para casos de emergência.

Aguardou com que Sorelle atendesse.

- Não deixe que ninguém saiba que eu te liguei, especialmente a mãe. - Falou de maneira lenta e composta, transparecendo seriedade. - E apenas ouça.

Emitiu o sinal de GPS apenas para Sorelle, imediatamente entregando sua localização.

- Eu darei sinal a cada 15 minutos, com um intervalo limite de 15 minutos. Caso esses 30 minutos se passem sem notícia alguma minha, é por que estou em perigo. Eu tenho meus motivos para não confiar na mãe. Eu vou enviar um padrão diferente caso eu possa reagir a uma situação extrema de perigo, que significa que você precisa vir de imediato.

Depois de configurar o dispositivo para que enviasse uma mensagem à Sorelle após uma sequência simples de toque, escondeu a concha no obiage, seguindo em frente.

A velha com aparência de sapo deixa Sorelle sem resposta por alguns instantes enquanto vasculha seus arredores. Ela cantarola uma música que pode parecer nostálgica para a princesa (se trata do ritmo de uma música de ninar) enquanto apanha algumas pedras no chão e as empilha diante da jovem.

Com algum esforço, inclusive precisando apoiar-se no ombro da princesa, ela sobe em cima dessas pequenas pedras e, com uma força maior do que se espera de uma anciã caquética, dá-lhe uma forte bofetada na cabeça com seu cajado.

— Desculpe por ser rude uma ova! Quem diria que depois de todos esses milhares de anos provendo esse planeta ingrato com todo o meu conhecimento e a honra da minha existência, viria uma patricinha toda sem peito pra me tratar assim. — Conforme resmunga ela alcança as vestes de Sorelle e a puxa por essas conforme caminha para a direção oposta do castelo. — Qual foi o meu pecado se não ser tão bela e inocente, oh deus oceano? O que eu fiz para merecer tanto desrespeito?! Escuta aqui agora sua mariola, se der uma dessas de novo eu não vou mais te dar mais um fio do meu cabelo de conhecimento, tá entendendo? Agora me pega no colo porque minha lombar tá doendo e precisamos sair daqui. Sério, pra qualquer direção, só quero cascar fora dessa imundice.

A velha estica os braços longos para tentar alcançar os ombros de Sorelle e subir em seu colo. Seu olhar transmite um misto de ira e pressa.

O lugar parece até se tornar mais escuro assim que o veículo deixa a garota sozinha e em terras desconhecidas. Apenas uma fraca luz azulada ilumina parcialmente o local, o que o torna ainda mais sinistro. O silêncio parece prestes à engoli-la a qualquer momento de tão denso. Apesar disso, quando a voz de Charlotte ao falar com a irmã mais velha ao telefone esse silêncio é quebrado e é a única coisa que pode ser ouvida a metros dali.

Ainda que não pareça haver nada e nem ninguém ali, próximo de onde ela se encontra, o som de sua voz parece chamar a atenção de algo. Passos já um pouco próximos podem ser ouvidos, provavelmente sendo duas pessoas, pelo som emitido.

Charlotte pode ouvir passos se aproximando, algo em torno de duas ou três pessoas. A única certeza era de que não estava sozinha lá. Mantivera os braços cruzados, com uma das mãos próxima ao obiage para que pudesse reagir o mais imediatamente possível caso algo ocorresse.

Sua primeira reação foi declarar que sabia das pessoas se aproximando, o que poderia deixá-las hesitantes e reconsiderar a probabilidade de um ataque surpresa.

- E vocês seriam...? - Optou pela forma menos hostil. Sua principal intenção era apenas fazer com que deixassem as sombras e optassem por uma forma mais formal de aparição.

Um pouco distante do castelo, Sorelle pode ouvir um alto ruído vindo dos arredores do reino. Sua origem não é visível, mas uma nuvem de poeira se alastra nas águas calmas daquele local e uma gritaria pode ser ouvida.

— Jardim não, menina. Crendeuspai, não me contaram que você era surda. — Apesar da situação, Ùna parece indiferente e exibe a mesma expressão rabugenta de sempre. — Eu falei pra gente se mandar, dar no pé, cair fora, vazar, procurar um pinto pra se coçar, ir na paz. Sair daqui, entendeu?!

A situação não parece trivial. Alguns plebeus do lugar rumam a direção do ruído, mas os homens mais fortes do reino saíram para procurar o pretendente desaparecido. Pouca força pode ser direcionada para aquele local.

— E é melhor que vá logo se não vamos pro saco eu e você, e eu não quero morrer virgem não.

A sapa não parece nem um pouco preocupada com o caos que se forma no horizonte. A cada minuto a situação vai se agravando a ponto de uma construção longínqua ruir e despencar, levantando ainda mais areia que cobre a visão do castelo.

Uma sirene toca no reino, característica de situações de perigo. Subitamente, todo o território parece entrar em colapso num ataque repentino e violento. Ao redor de Sorelle, apenas uma visão decadente do reino que ela em breve governaria.

— Oh menininha néscia, vamo logo se quiser salvar sua irmã. Aliás, ela tá pra lá. — Ela aponta de maneira folgada uma direção específica. — E deve ter trombado com os malfeitores agorinha. Êta menina parva também, ainda bem que você é a primogênita. Imagina só uma sem bunda como aquela com um reino nas mãos?! A sorte de vocês é que tem a mim, sério mesmo. Mas não se acostuma não, eu só tenho mais mil anos de vida e depois puft, cabou! Aí eu quero ver se não vão sentir falta.


As duas aproximam-se de um pequeno veículo característico, parecido com um submarino. Ele está vazio, e as portas estão vazias. É notável também que ele definitivamente não provém daquele reino a julgar pelas decorações.

— Sabe dirigir ou essa cabecinha só pensa em home?

A tensão torna-se palpável quando o som dos passos tornam-se cada vez mais altos, denunciando que estão cada vez mais próximos de Charlotte. Além disso, a pergunta em voz alta da garota direcionada à seja lá quem estiver se aproximando não é respondida. Aos poucos, ela pode ver sombras crescendo e avançando em sua direção.

Seus donos, entretanto, não tem rostos visíveis na distância em que estão devido à baixa luminosidade do local. Suas silhuetas não são enormes nem monstruosas, parecem ter a mesma espécie que ela. Apesar de não conseguir identificar quem são, eles já parecem saber quem ela é e se aproximam rapidamente, determinados.

Conforme se tornam mais visíveis através da proximidade e dos pequenos feixes de luz, ela pode notar que a etnia deles é diferente da sua pelo formato de suas cabeças principalmente, provavelmente pertencendo a algum outro reino. Eles carregam armas brancas simples, o que ela pode identificar apenas pelo brilho das lâminas. Uma risada sádica sai da garganta do mais alto deles, enquanto o outro permanece sério. Os homens se movem de forma a tentar encurralar a garota em uma pedra próxima.

— Veja só o que temos aqui. Uma princesa, Ghuk. Olhe só os cabelos dela, e esses olhos... Parece que a sorte está a nosso favor, e contra a pobre garota... É mesmo uma pena, não acha? — Mesmo com a pouca luz, ela pode ver que o mais alto sorri abertamente, cada vez mais perto da menina. — Quais são suas últimas palavras, gracinha?

— Cala a boca, Iveks. Não é hora pras suas idiotices. Você sabe que o valor que podemos conseguir com essa garotinha é muito maior do que já tivemos em toda a nossa vida. Não estrague tudo com essa merda, ou eu juro que te mato de uma vez. — O mais baixo rosna, enquanto parece já preparar sua faca, com os olhos fixos em Charlotte.

Charlotte respirou fundo, mantendo a calma. No fundo, já sabia que isso aconteceria.

Charlotte desconfiava da mãe, convicta de que aquilo era uma armadilha, e, além disso, não tinhas chances contra dois filhos da puta armados com uma faquinha.

- Vocês poderiam ao menos se livrar das facas? Sabe, sou uma dama desarmada contra dois cavalheiros empunhando uma lâmina... Vamos ter uma batalha justa, vocês provavelmente venceriam mesmo... - E suspirou, demonstrando fragilidade e cansaço. Se ao menos conseguisse que se livrassem da faca, já seria um ótimo passo. Levou os punhos fechados como em oração até próximo ao peito para transmitir vulnerabilidade, enquanto sorrateiramente dava o sinal de alerta para Sorella, deixando com que a localização exata de Charlotte começasse a ser marcada, como um GPS. - Por favor?

Talvez fosse o jeito da garota usar as palavras ou até mesmo a sua beleza que fizeram que as expressões dos homens se suavizassem. Não é uma diferença absurda, mas é notável para a garota ainda que no escuro. Além disso, pela personalidade de ambos, certamente não deixariam transparecer qualquer sentimento que faça com que sejam taxados como fracos ou qualquer coisa do tipo. Eles se entreolham e, em um acordo mútuo silencioso, abaixam com as facas sincronizadamente e devagar, para deixá-las no chão.

— Quero deixar claro que seu pedido só será atendido porque não somos covardes. Não temos medo de uma garotinha, e podemos conquistar esse dinheiro com nossas próprias mãos, sem o uso de qualquer arma. — Ghuk diz, ao deixar a arma cair no chão. — Mas se quer uma batalha justa, lute direito e não faça com que eu me arrependa.

— Poxa... É uma pena termos que vender uma garota tão bonita. E se ficássemos com ela, Ghuk? Veja só, ela tem muitos cabelos... E continuariam crescendo, certo? Poderíamos vender só os cabelos por muito tempo... — Iveks lamenta, ainda com um sorriso particularmente assustador, tentando tocar os longos cabelos brancos de Charlotte com a mão direita.

Apenas o toque de Iveks já seria suficiente para uma onda elétrica percorresse seu corpo, e essa era a condição para que Charlotte tivesse a chance de tentar paralisá-lo. Antes de deixar que a mão da criatura se afastasse após o primeiro toque, a jovem agarrou o pulso de Iverk, utilizando a própria mão para liberar a segunda onda elétrica na intenção de paralisá-lo por definitivo, chutando a faca para trás de si.

- Certo. Que lutemos de mãos nuas.

— Ai menina isso aí ta bom. Eu nunca dirigi na vida, sabe? Na época que eu nasci esse trambolho nem existia. Hoje em dia eu tenho uns boboca que faz isso por mim. — Ela conta enquanto se ajeita no seu assento e estica as pernas e estende os pés cheios de joenetes para cima. — Sem querer ofender.

O caminho parece claro por hora, mas a nuvem de poeira que resulta da destruição daquela estrutura ameaça engolir o submarino a qualquer momento. Caso isso aconteça, será impossível enxergar o caminho a frente.

— Eu não vou te dar instrução de coisa nenhuma, você sabe o que faz. Aproveita que eu vou nanar um pouquinho que essa coisa toda de salvar princesa me cansou pra chuchu. Quando acordar quero sua irmã aqui no veículo, viva ou morta, e umas fotos de rapazes novos com o corpinho trincado. Pode ser uma revista, um álbum, sei lá. Só não me dá coisa de internet que eu não sei usar.