Estrelas do mar - Irmãs Sulivayr

Pelo visto Charlotte não teria que lutar daquela vez, o que era um alívio.

Ainda surpresa pelos poucos centímetros que o automóvel do desconhecido havia ficado de acertá-la, apenas recuou de maneira instintiva, até notar se tratar de Sorelle. Charlotte estava aliviada de ter ligado para a irmã momentos antes, caso contrário qualquer segundo de atraso com a explicação poderia ter custado sua vida.

Após entrar no veículo, a jovem tirou o celular do obiage, filmando os dois homens caídos.

- Aparentemente se chamam Ghuk e Iveks. - Falou em alto e bom tom, não ao ponto de gritar, mas certificando-se de que ouviriam antes que pudessem se levantar. - Eu vou foder com a vida de vocês.

Os homens são atingidos pelo veículo com força pela velocidade com a qual estavam, caindo no chão quase que imediatamente. Apesar de parecerem ameaçadores anteriormente, agora parecem mais frágeis do que nunca, além de realmente machucados. O atropelamento realmente foi forte, ou eles nunca foram realmente muito resistentes.

Enquanto o mais alto, Iveks, parece estar inconsciente, com o sangue se espalhando aos poucos na água ao seu redor, Ghuk está tão machucado quanto, mas permanece consciente. Com poucas forças, o máximo que consegue fazer é lançar um olhar afiado na direção das princesas, especialmente a Charlotte. Mesmo vendo que está sendo filmado, ele não se esconde. Prrovavelmente para não demonstrar medo, ainda que esteja à beira da morte.

Mesmo com a música, a velocidade altíssima e a conversa entre as irmãs dentro do carro, a idosa não dá sinal algum de que está perto de acordar. O som do ronco profundo de Úna é mais alto do que as vozes das princesas e até mesmo que a música tocada no rádio, tomando conta do veículo. Considerando seu sono pesado, ao menos não seria difícil para Sorelle conseguir as fotos de homens jovens que lhe foram pedidas antes do adormecer da mulher.

A reação de Charlotte ao vermelho que tingia a água parecia inusual para alguém da idade dela, ou até mesmo para alguém sem traços de desvio de caráter. Achava aquele tom de vermelho atraente, e vulnerabilidade dos homens estimulante, quase como que admirando a miséria daquelas criaturas. O olhar afiado de Ghuk fora capaz de causar um arrepio em Charlotte, arrancando um sorriso até mesmo mais assustador que o de Iveks, sentindo uma pontada de excitação com o olhar odioso do homem deixado para morrer naquele canto isolado, onde provavelmente ninguém o ouviria, mesmo se gritasse.

Se não fosse pela presença de Sorelle, Charlotte teria ido bem além. A situação caótica estava arrancando o pior da personalidade da moça que parecia quase reconhecer a tentação de torturar aquelas criaturas debeis e miseráveis. Sentia prazer em saber que aqueles homens morreriam lenta e dolorosamente, mas, ao mesmo tempo, insatisfeita por não ser pelas mãos dela.

- Não. Estou bem, você chegou a tempo, obrigada. - Falou com calma, parecendo plena apesar do que poderia ter ocorrido.

Checou a filmagem, assistindo ao olhar deplorável de Ghuk mais uma vez, até Sorelle lançar uma pergunta que parecia óbvia demais.

- Por que não pergunta para a rainha? Qualquer pessoa deduziria que ela tentou me matar. Se você pensa que isso possa ser um engano, então deveria conversar com ela, e não comigo.

De longe, as princesas podem ouvir o ruir de uma grande estrutura, junto com uma nuvem de poeira que engole o ambiente. É visível que algo enorme caiu, e o som vem da direção do castela daquele reino. Algo grande estava acontecendo, e as duas poderiam estar mortas se não fosse pela sapa gorda e velha que despreocupadamente dorme no veículo.

De dentro dessa poeira, surgem algumas silhuetas que se aproximam. Dessa vez não são mais duas e sim muitas que se aglomeram na direção de Charlotte e Sorelle. Nesse momento, Ùna dá os primeiros sinais de que pode acordar, mas vira-se para o lado e continua em seu confortável sono.

- Ora, eu sei onde encontrar. - Cruzou os braços, sorrindo com o canto dos lábios como alguém prestes a falar algo pervertido. E assim o fez. - Irmã, talvez o bordel o qual nosso pai visita todo final de semana lhe possa ser útil. - Provocou, apesar do tom sério que dificultava distinguir entre a verdade e a provocação.

Levou o indicador até o queixo, parecendo pensativa.

- Mas não sei se eles também servem às mulheres... Podemos descobrir. Ou melhor, você pode, sou menor de idade e não posso entrar.


Observava a estrada durante o trajeto, arqueando a sobrancelha ao notar a poeira.

- Você não pretende retornar enquanto ainda estamos sobre ataque, certo, Sorelle?

Úna continua tão imersa em seu sono profundo que nem o forte tranco causado pela acelerada no veículo. Acelerada essa que é tão ágil e controlada que faria qualquer um ficar boquiaberto. Elas conseguem escapar por um canto mal coberto pela multidão de estranhos, e a rapidez do submarino nas mãos de Sorelle é tanta que eles mal conseguem acompanhar seus movimentos para tentar impedi-las de fugir. É um feito impressionante, visto que talvez nem seus melhores motoristas conseguissem sair dessa situação tão facilmente.

A viagem sem rumo é um pouco estranha, sendo a maior parte do caminho escuro. Algum tempo após o início do trajeto, elas veem algumas casas localizadas em lugares não tão sombrios, mas não chega nem perto de ser tão privilegiado quanto a cidade onde vivem. As casas são pequenas, com comércios simples por perto também. Provavelmente o local fica na divisa entre dois reinos, e por isso é tão humilde. Conforme passam pelas moradias e minúsculos estabelecimentos, podem notar que as todas as portas e janelas estão fechadas, sem exceção.

Charlotte observava a cidade pela janela do automóvel, se perguntando o motivo de estar tão deserta.

- Sorelle, acho que estamos num filme de terror. - Falou em tom sério, apesar do sorriso maroto. - Vamos nos separar e buscar por mais pistas. - Dessa vez, o tom claramente era de chacota, arqueando a sobrancelha conforme adentravam o local.

- Hum, nosso cabelo certamente seria um problema. - Afundou as costas na poltrona do veículo. - Procurar um hotel para passa a noite está fora de questão, seria arriscado demais.

Continuou atenta nas redondezas, buscando por qualquer sombra que se esgueirasse nos cantos desertos daquela cidade.

- Talvez seja melhor atravessarmos a fronteira. Não muito distante está o reino do meu... noivo.

Suspirou, lembrando-se do sumiço do homem. Não sabia como a família dele estava lidando com isso.

As ruas do pequeno vilarejo permanecem silenciosas e desertas. Diferente do interior do carro, onde só é possível saber que a anciã continua viva após tanto tempo dormindo por conta de seus roncos altíssimos. Além disso, há o som emitido pelo submarino, inevitavelmente. As princesas nada ouvem, mas provavelmente estão sendo ouvidas. Ainda que Sorelle repare bem, nada de estranho vê por todo o caminho.

Já os olhos afiados de Charlotte, percebem logo quando passam próximo a uma pequena casa tão parecida com as outras que há algo diferente. A janela da casa está ligeiramente aberta, e a princesa pode notar que na fresta há algo que parece um par de olhos, próximos ao batente. Além disso, ela se sente claramente observada.

Não demorou muito que seus brilhantes e afiados olhos fossem de encontro ao olhar de uma sombra a espreita. Não somente isso, mas a constante sensação de estar sendo observava parecia ter se tornado mais forte.

- Estamos sendo vigiadas. - Falou calmamente, fingindo não estar alerta para não despertar nenhuma ação premeditada por parte de quem estivesse as observando. - É melhor pisar nesse acelerador antes que nos sigam.

Charlotte suspirou, não acreditando no que tinha acabado de ouvir.

- Sorelle, eu acabei de ser atacada. - Falou de maneira brusca, apesar do tom calmo característico. - E você sugere descer numa cidade deserta para investigar alguns homens se espreitando nas sombras?

Cruzou os braços.

- Você ao menos tem algo para esconder o cabelo?

Lentamente os olhos da lindíssima Ùna se abrem, carregando toda a delicadeza de uma ninfa virgem que acorda de um sutil sono de beleza. Com seus olhos, abrem-se também as portas da esperança e uma atmosfera encantadora preenche o lugar.

— Hahahahaha, soltei um peidão! — Exclama enquanto o barulho desagradável de gases que anuncia sua consciência toma conta do lugar, assim como o cheiro terrível que resulta. — Falei que tinha que ir no banheiro, menina.

Esfregando os olhos, ela acostuma-se com o ambiente ao seu redor. Nem faz questão de cumprimentar Charlotte que, em tese, não conhece. Tudo o que importa é que as duas ainda estão vivas, então está tudo como deveria estar.

— E aí gente, aonde que a gente tá? Não imaginei um ambiente tão mequetrefe. Tu tá muito desídia pro meu gosto, rapariga, tomara que sua irmã seja melhor do que você.

Charlotte bufou, respirando fundo com a teimosia da irmã e logo retrucando:

- Nem ferrando, se algo acontecer com você, quem morre sou eu! - Declarou, enrolando o tecido ao redor do cabelo.

Depois do peido de Ùna, não era como se Charlotte fosse a favor de ficar lá dentro.

Com um gesto de "Você explica" para a Sorelle, a mais nova deu de ombros.

Enquanto as três conversam entre si, um som de rangido pode ser ouvido. A porta de uma das velhas casas ao redor de si é aberta lentamente, a mesma casa onde Charlotte antes tinha notado um par de olhos as observando no escuro. Um pequeno e frágil corpo pode ser visto conforme se esgueira com cuidado para fora da moradia, aparentemente apreensivo.

A figura se move na direção das garotas e, conforme avança, a pouca luz atinge-a e revela sua aparência. Trata-se de uma criança, um menino de no máximo dez anos de idade. Seu corpo infantil é muito magro, como se ele não comesse há algum tempo. Seus olhos brilham em expectativa, mas ainda parece receoso com a presença das desconhecidas. O garoto engole em seco, mantendo-se a alguns metros de distância das princesas e da anciã, por segurança.

— É... Quem são vocês? — Pergunta inocentemente, quase num sussurro. Seu semblante está claramente abatido, e as mãos acariciam sua própria barriga, como se estivesse sentindo dor no local.

— Mas que revista menina, ficou doida é? — Questiona, parecendo realmente não se lembrar de ter pedido revista nenhuma. — E olha aí, falei que você conseguia dirigir direitinho, tá vendo? Se a rainha aí saiu correndo pela cidade depois de passar a vida inteira com a bunda grudada numa cadeira com gente trabalhando pra você, vai conseguir encontrar comida também.

— Vamo parando com esse papo aí de morrer, ouviram? Eu sou muito nova pra essas coisa, e vocês ainda tem muito caviar pra comer na vida. Até porque nenhuma amiga da GRANDIOSA ÙNA nunca morreu... hehehe, vocês são as primeiras. — Ela tenta adotar uma postura heroica, mas suas costas doem de súbito e ela coloca a mão sobre a bacia, tentando evitar que seu rosto se contorça.

A idosa se ajeita no banco do submarino novamente, procurando conforto. Ela recosta sua cabeça no vidro, olhando para fora brevemente antes de voltar-se para as princesas mais uma vez.

— Eu num vou sair da minha cadeirinha porque sei que vai ter imbróglio nessa cidade. Mas vê se traz alguma coisa pra mim, viu?

Charlotte suspirou. Como Sorelle achava que uma garota de 14 anos que nunca dirigiu na vida iria se virar naquele submarino? Ela nem idade suficiente tinha para conseguir uma carteira de motorista, quiçá dirigir um veículo tão grande e pesado.

Mas não fazia sentido estender a discussão, a mais jovem realmente não tinha saco de discutir com uma Barbie Privilegiada que herdou o trono por que "mereceu". Sorelle provavelmente não mudaria de ideia e iria sozinha caso Charlotte não fosse, e, se perdesse a irmã mais velha, o que mais lhe restaria?

Não que se importasse com Sorelle, apenas não queria ficar sozinha. Por mais amargurada que Charlotte fosse, ainda era uma adolescente de 14 anos que precisava de amor e cuidado, apesar de nunca ter tido nenhum dos dois.

Pegando o primeiro objeto afiado e cortante que encontrou no carro, escondeu por debaixo do seu obiage. Se ameaçar não fosse o suficiente, poderia comprar favores, já poucas coisas debaixo d'água eram tão valiosas quanto uma mecha de cabelo brilhante e exótica.

- Somos apenas visitantes cruzando a cidade, criança. Poderia nos informar onde estamos?

O menino se aproxima um pouco mais ainda com receio, mas aparentemente um pouco mais confortável. Assim, um dos raros feixes de luz provenientes da superfície que alcançam aquele lugar por ser muito profundo, atinge o pequeno e sua aparência é mais visível agora.

Ele claramente pertence à uma linhagem diferente daquela das garotas. Sua pele é de um tom arroxeado, e pequenos tentáculos mais escuros podem ser vistos saindo de seu tórax. Ele usa roupas já muito batidas e velhas e, apesar de sua aparência não ser muito agradável, tem olhos grandes e inocentes como qualquer criança.

— Aqui é o vilarejo de Votfair, estamos meio esquecidos... desde sempre. Pelo menos é o que a mamãe diz. Daqui dá pra ver todas as casas, sabe, é pequenininho mesmo. — Ele parece triste, desviando o olhar para baixo. — A parte boa é que não dá pra se perder, mas... Não tem muitas crianças pra brincar, e faz dias que a mamãe disse que não tem mais o que comer em casa. Eu tô com fome, moça. — Reclama baixinho, apertando o abdômen infantil como se tentasse fazer a dor cessar.

Charlotte fechou os olhos por um momento, refletindo. Como sua pergunta já havia sido respondida, decidiu trocar de assunto e ir para o que estava lhe incomodando.

- Criança, o problema é não encontrar alimento, ou não ter dinheiro para pagar por ele? - Se o problema fosse o dinheiro, Charlotte poderia... resolver isso facilmente. Era só uma criança, que mal teria?

Lançou para Sorelle com um olhar que firmemente dizia "A coroa é sua, princesa. Não vai ajudar seu povo?".