Protegendo o território.

— S-Sim senhor. — Dessa vez, ela não diz de um jeito titubeante e sim rancoroso. Como se cuspisse as palavras. — Mas não sei exatamente qual loja é a dele.

Kadina já estava insatisfeita com a situação, mas não pensava que teria que trabalhar de graça e perder possíveis clientes. Frederick é insistente e incansável e de fato age como o estereótipo da Aliança para aquelas pessoas. Até então, sua atitude consolidava ainda mais aquela imagem pejorativa no imaginário da Haytok.

Ela segue pelas ruas confusas e tortas da cidade, indicando que de fato a conhece muito bem. Poucos lugares são indicados por placas, mas ela evita a maior parte deles. Talvez sejam perigosos ou talvez sejam ciladas preparadas por ladrões.

Geralmente em suas viagens ela tenta conversar com o cliente. De fato, Kandina tenta ser uma guia e trabalhar honestamente em meio àquela mazela, e leva a sério o seu trabalho. Com Frederick, porém, aquilo não parecia ser possível. A ideia de tentar ganhar um trocado, porém, a incentivava.

— Então... o que acha desse lugar?

Antes de sair, indicou para Tan e a pilota o seguirem com tapas no ar em sua direção.
Sendo que, aparentemente sua atuação estava sendo efetiva. Parecia um mal soldado. Mas, o triste e que afetou o coração fardado de Frederick era que não foi pela ameaça. Dizer ser cabo e ameaçá-la não resultou em nada. O real resultado veio da palavra "Aliança".
Seria a Aliança realmente tão suja quanto este planeta?

— Sujo — respondeu, ríspido. Talvez por ser a última palavra em sua mente.

Ele olhava para os lugares, novamente tentando decorar suas passagens. Sentia que ficaria um tempo naquele planeta, então queria se tornar um cidadão e não um visitante. Queria mudar ele, e para mudar há de morar.

— Quando Gabuk aparece normalmente? — perguntou ele. Suas frases estavam longes de ser ameaçadoras. Ele esquecia facilmente que tinha que parecer mal (ou talvez só não sabia).

Com a mudança de tom, Kadina também tranquilizou-se. Ela pensa que o motivo é sua lábia ou eloquência e está longe de imaginar que a atitude de Frederick é uma atuação, até porquê não é muito diferente de muitos visitantes que menosprezam o planeta e seus habitantes.

— Sei que ele atrai clientes na rua e os leva pra sua loja, que só os mais fiéis sabem onde é. Eu não sei porquê tudo isso para perfumes, mas ele diz que são importados de não sei qual planeta.

Ela reflete por alguns instantes sobre a opinião do soldado. Não sabe se absorve o significado bruto daquilo ou se o aprofunda.

— Bom, você não tá errado, mas a cidade têm seu charme depois que você aprende a viver nela. É mais difícil se acostumar com os estrangeiros do que com os moradores locais, sabe? Pessoas que vêm pelo turismo sexual, trabalho escravo, membros da causa rebelde e... bem, vocês. As vezes.

— Existe algum caso dele aparecer por causa de alguma revolta? — perguntava ele, meio que ignorando as palavras da Haytok.

Ainda estava magoada com ela, então, o que ela falava parecia provocá-lo de certa forma.

— Como eu te disse ele não se apresenta como soldado. Logo não sei se desempenharia esse papel, entende? — Responde enquanto caminha, sem se preocupar em encarar Frederick. — Esse planeta tá sob a responsabilidade da Aliança, mas já tá largado faz tempo. E eu não culpo vocês, realmente não têm nada a se explorar por aqui. Por isso sua presença prolongada é meio esquisita.

O ambiente começa a mudar. As pequenas barracas que Frederick podia ver no Distrito Comum dão lugar a construções de madeira que formam becos escuros e vielas mal-posicionadas. O olhar das pessoas acompanha a mesma mudança, tornando-se mais agressivo e intimidador.

— Geralmente quem cuida dos problemas de segurança é a milícia local. São boas pessoas e por vezes aparecem na cidade pra ajudar alguém ou distribuir comida. Eu temo um pouco onde isso pode chegar, ainda assim. Se subir a cabeça, eles podem dominar Shinar. E milicianos no poder não me parece algo bom.

— Bom... Se ele não aparece como soldado, fico confuso se devo aparecer como um... — dizia ele, totalmente em devaneio.

Estava claro que havia esquecido de ser mal. A companhia da guia era boa, ela era uma boa ouvinte e sabia os tópicos a se conversar. Ele se sentia em boa companhia, então não se sentia no direito de ser mal.

— O que você acha?

— É difícil de dizer. — Ela tenta conciliar a fala com a retribuição dos olhares e gestos pouco compreensíveis para afastar os transeuntes alertas. Aparentemente, o caminho seria bem mais difícil sem alguém com a malandragem do lugar. — Não sei se tá atrás dele porquê ele fez cagada ou porquê é seu amigo. Mas deveria falar com um cliente dele, seria mais fácil.

Uma placa mórbida e mal colocada indica que chegaram ao destino. Curiosamente, ele detém um pouco mais de tecnologia do que o local anterior, contando inclusive com um meio de transporte ferroviário bastante sucateado. Sua infra-estrutura, entretanto, é tão ruim quanto.

Apesar do olfato ligeiramente mais aguçado de sua parte felina, o cheiro da areia que adentra as narinas do médico cheira apenas a areia comum. Os garotos observam Renard com os olhos grandes e curiosos enquanto ele olha para o sol, como eles faziam antes. Quando ele decide voltar a andar, eles voltam a guiá-lo pelo estranho deserto que cobre aquele planeta.

— A mamãe sentia umas coisas assim... 

— Não tenho certeza disso.

— A gente nem se lembra direito dela, né?

— Não fala assim da mamãe, Draigrir!

— Drukain, responde a pergunta do tio raposinha direito!

— Hum... A gente não tem contato com muita gente de fora.

— Só conhecemos melhor as pessoas da Milícia do Povo!

— MILÍCIA DO POVO!!! — Os gêmeos repetem o ritual em uníssono, mesmo na ausência dos outros membros. É como se já fosse automático para eles.

Eles estão chegando cada vez mais perto de um lugar com milhares de coisas empilhadas, quase como um depósito de lixo. Ali, estão apenas uma pequena parcela das coisas abandonadas pelos antigos habitantes de Phax.

— Você sabe quem é o cliente mais famoso dele? E não te importa o porque estou aqui — perguntou ele, afrontando logo em seguida.

Ele precisava, pela infelicidade dele, manter a rivalidade até obter essa última resposta. Pois, aparentemente, ela não iria servir muito mais. Já havia dado todas as possíveis respostas, uma descrição do local e, pela atitude dela, mostrado que o local era hostil para/com visitantes.
Fora uma guia completa, então, após essa pergunta, iria se desculpar com ela.

Os garotos suspiram, quase ao mesmo tempo. Eles avançam a frente de Renard, parando de puxá-lo para se aproximarem do depósito de lixo e tentarem enxergar melhor. Devido aos montes de lixo acumulados e empilhados, é difícil enxergar bem o que há dentro de cada um, ao menos da distância em questão.

Os gêmeos continuam a adentrar o lixão, se deparando com pés de metal compridos, parecendo fazer parte de uma arcaica maca de hospital. Os pequenos notam aquele objeto e começam a puxá-lo, olhando vez ou outra para o Iomarshiano enquanto fazem força.

— Titio raposinha!

— Será que é isso aqui? 

Ela parece um pouco desconcertada, olhando em volta e colocando as mãos nos bolsos traseiros da calça. Seu olhar então é fixado em algo, ou melhor, alguém um pouco distante dali. A guia comprime os lábios e sinaliza com a cabeça para que o homem olhe discretamente na mesma direção que ela. Essa é, além disso, uma boa fuga para não precisar esboçar uma reação diante do tratamento grosseiro.

— Bom, aquele cara ali é o cliente mais famoso dele. Acho que dá para perceber o porquê, só de olhar. Mas, bem... Quem sou eu para dizer algo? — Finaliza com uma pergunta retórica, sem tirar os olhos do homem que encarava.

Ele é realmente um pouco esquisito, um Kroyvisiano de pele já muito envelhecida, mas de idade indefinida. Sua estatura é bem maior que o comum, e pelo seu corpo só de olhar já é possível notar que está muito abaixo do peso. Seus cabelos são compridos, assim como a barba, e estão oleosos. Aliás, ele é tão branco que apenas seus escuros pelos corporais o diferenciam de um Jhayesiano. A mera existência de alguém de sua raça ali já é algo estranho. Ele está sentado em um banco de madeira sozinho, um pouco distante dali, e seu olhar parece um pouco perdido.

Os garotos continuam usando todas as suas forças para puxar a provável maca para fora da enorme pilha de lixo, mas ao tentar também Renard pode sentir o quanto o trabalho está difícil. O objeto está realmente soterrado, e tanto lixo não poderia pesar pouco de qualquer maneira. Gotículas de suor começam a escorrer pela pele pálida dos gêmeos, que curvam seus corpos para trás e prendem seus pés no chão tamanho o esforço. Aos poucos, eles podem sentir que o objeto finalmente começa a se mover.

— Ai...

— A gente...

— Vai conseguir...


Algumas coisas começam a cair da pilha nas laterais e se espalham pelo chão, mas uma quantia significativa consegue ser puxada. Os garotos de súbito parecem se sentir mais fracos e acabam caindo para trás, impulsionados pela força feita anteriormente. Ambos estão com a respiração e os batimentos cardíacos acelerados.

— Que droga...

— E agora?

— Obrigado — disse ele, imediatamente, vendo que ela não iria negar respostas — Preciso admitir que adorei a sua ajuda e desculpe por enganá-la. Se eu conseguir voltar, irei pedir para que o Sergei ajude-me na sua recompensa. Ao menos eu espero conseguir uma recompensa... — dizia ele, enquanto se preparava para ir em direção do homem. Tinha que esclarecer as coisas para ela, pois se sentia mal de ter feito aquelas imbecilidades à ela.

E isso contava com um outro pensamento. Ela não o iria denunciar ali, pois ela mesmo sabia da quantidade de ladrões naquele lugar, além de que havia um cliente de um soldado. Ela era esperta, claramente esperta – pois, se não, não seria uma guia –, então sabia que Frederick poderia voltar com a atuação à qualquer momento e fazer com que a Aliança se volte à ela.
É claro que ele não gostaria de fazer isso e se sentiria muito mal se ela acabasse morta por isso. Ia acabar recebendo mais um grilhão preso ao seus pés.

— Não se preocupe, eu sou bom em decorar as pessoas. Obrigado — terminou ele de falar. Não dava tempo d'ela responder, indo imediatamente à direção do famoso cliente de Gabuk.

Ele botava a mão em seus bolsos, onde estavam as suas pistolas escondidas. Para quem não o conhecia, esconder as mãos poderia significar duas óbvias coisas: lealdade e traição repentina. Quem esconde suas mãos sempre tenta mostrar que não veio atacar, pois seus punhos estão em desvantagem. Assim como há quem esconde suas mãos para usar os seus punhos de surpresa. Era um plano arriscado, visto que não conhecia a história do cliente. Mas, tudo naquilo era arriscado. Esperava não ter que mudar de planos.

— Com licença, senhor. Fui mandado pela Aliança para ir atrás do Sargento Gabuk. Vejo que não é comum sua raça por aqui, senhor, então suspeito que o senhor esteja aqui conosco, não é? — ele referia-se o conosco como a Aliança. Afinal, com Frederick apenas havia a milícia do povo ao seu lado. Nem o médico poderia contar em totalidade, apesar dele confiar.

Os garotos suam frio, estando o sol em seu ponto mais alto do dia, se é que há um. A temperatura altíssima faz com que as gotas escorram longamente por seus rostos, até que pinguem enfim em suas camisetas velhas. Os cabelos dos garotos também estão úmidos, e eles desajeitadamente jogam-os para trás tentando afastá-los do rosto afim de aliviar suas temperaturas corporais. O médico pode sentir a pulsação acelerada de ambos, quase sincronizada com as próprias respirações. As peles das crianças também estão muito mais quentes do que o comum e além disso, seus lábios estão completamente sem cor.

— Titio raposinha...

— Por quê você ficou verde do nada? 


Os olhos dos garotos se fecham ao mesmo tempo, parecendo tontos. Um instante depois, seus corpos desabam moles no chão.

A garota permanece parada enquanto Frederick revela que estava fingindo até agora. Ela pisca uma, duas, três vezes, completamente atônita. Assim fica por alguns instantes, mas quando ela finalmente decide abrir a boca para dizer algo, já irritada por ter sido enganada, ela interrompe a si mesma e o deixa ir. Embora as ameaças anteriores pudessem ter sido feitas em vão, não poderia se arriscar assim. A guia apenas o observa, enquanto o humano se aproxima do homem anteriormente apontado por ela mesma.

O Kroyvisiano não olha para Frederick em momento algum. Pelo contrário, seu olhar permanece fixo em um ponto qualquer a sua frente, é como se ele nem estivesse presente ali. Agora, ele pode ver as olheiras profundas e escuras que abaixo dos olhos do homem, e que seu corpo é basicamente composto apenas por ossos. Certamente, Frederick nunca viu um Kroyvisiano com tal aparência em sua vida. O homem já sibilava algumas palavras incompreensíveis baixinho antes, mas elas tomam alguma clareza com o tempo.

— A Aliança... Sinto que já fui de alguma coisa assim. Mas eles são todos filhos da puta, não são? É claro que são! Mas quem não é filho da puta? Eu sou! Olha o que eu fiz comigo, olha o que fizeram comigo! Mas não tem problema, já estamos todos fodidos, não é? É claro que estamos! — E ele ri, mas a todo tempo não olha para Frederick. É como se ele nem mesmo soubesse que ele é real, e está ali bem ao seu lado.

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A pulsação dos garotos não para, assim como suas respirações. Mas seus olhos não se abrem durante todo o caminho, estando ambos os corpos moles nos braços do médico. Suas roupas estão completamente encharcadas com o próprio suor que sai de seus poros mais e mais. A sala concedida a Renard pela Milícia do Povo permanece vazia e ele não encontra ninguém durante o percurso.

O cômodo está completamente vazio, assim como antes. Entretanto, ele pode notar uma porta aberta que leva a outra sala que não havia visto antes. Algumas prateleiras estão espalhadas pelas paredes da sala, como se fossem para guardar mantimentos. São escassas, certamente, mas dentre das pouquíssimas coisas ali dentro, ele pode ver um pacote um pouco antigo de salgadinhos, já no final.

Ele olhou confuso para o homem, virando até mesmo a cabeça na direção de onde estava a guia anteriormente e, caso estivesse ali ainda, apontaria para o moço com um olhar extremamente confuso. Iria até mesmo silabar "o que tem com ele?".
Contudo, tentando não arranjar preconceitos contra o velho, tentou ser compreensível antes mesmo de perguntar tudo o que havia.
Verificou, também, caso ele não estivesse com algum dispositivo de realidade aumentada.

— Senhor? Está tudo bem? — perguntou ele, agachando-se levemente para ficar do tamanho do homem ali sentado.