Protegendo o território.

Com os termos acertados, a dupla de milicianos deixa as portas traseiras abertas para que os recém-conhecidos soldados juntem-se à viagem. Assim que o fazem, a Iormashiana pisa fundo no acelerador e avançã em velocidade pelas dunas de Shinar

— Olha, não é pessoal não viu? Aliança, Reconquista, a gente não tá nem aí. Nosso lance é impedir que vocês cometam qualquer tipo de abuso. Que cheguem longe demais, entende? — Ela parece animada. Participar daquela milícia é uma grande aventura para a felina. — Por enquanto é Shinar, mas querremos expandir a Milícia do Povo pro universo todo! Né não, Tan?

O Haytok permanece pensativo com os braços cruzados. Não que ele não goste de fazer parte daquele grupo de pseudo super-herois, mas algo o preocupa.

— Escuta... vocês disseram que precisam acabar com os arruaceiros. Nós somos os arruaceiros. Como vão fazer para concluir sua missão?

— Tsc — deixou ele escapar. Aquele papo de "nosso lance é impedir que vocês cometam qualquer tipo de abuso" relembrava seu discurso; relembrava que não teria metade dos abusos se os civis do planeta também não abusassem.

Ele não conseguiu segurar seu descontentamento. Cruzou os braços e ficou encarando todas aquelas pessoas. Estava confiando neles, no fim das contas, mesmo sendo todos hipócritas em sua visão.

O quartel general certamente não é distante - tampouco bonito. De longe, poderia até mesmo parecer uma emboscada de tão mal-organizado que é o local.

Trata-se dos destroços de uma grande nave de origem impossível de se identificar, sobre as quais se estendem tendas organizam-se pequenos grupos. Alguns deles treinam combate físico, outros treinam a mira e alguns empenham-se em costurar roupas ou armazenar comida. Parece uma pequena comunidade escondida.

— Lar doce lar! — Exclama a felina que parece se sentir em casa. — Vamos, assembleia! Não temos uma desde... nunca tivemos uma! Isso vai ser legal, não vai?!

— Como vou saber se vai ser legal? Aposto que a maioria nem sabe dessa regra.

Os dois deixam o veículo e, no mesmo instante, a Iormashiana trata de levar Grusha para receber atendimento. Tan, por sua vez, aproxima-se de um senhor que traja uma armadura velha com o símbolo da Aliança.

— Aí, Paizão, eles querem convocar uma assembleia pra resgatar os três prisioneiros da Aliança. Eles dizem não ser vilões.

O homem parece surpreso ao ver a dupla de soldados chegando até ali e interessa-se nos dois quando o Haytok menciona que fazem parte da Aliança. Com calma, aproxima-se de ambos com uma expressão carrancuda.

— Oi. Quais os seus nomes e o que podem oferecer em troca dos seus homens?

Aquele lugar irritava ainda mais Frederick. Era visível e falsamente organizado. Ele pensava isso, pois parecia óbvio que cada um treinava e fazia o que quisesse ali desde que se sentisse "em seu lugar".
Ninguém ali parecia fazer algo que fora obrigado, não havia rostos de descontentamento. Pareciam crianças que os pais enganaram dizendo que se fizessem isso seriam recompensados ou iriam ser heróis.
Isto apenas deixava o cabo leonês mais irritado. Seu rosto estava fechado, algo inteiramente novo para o seu capitão, mas que para os recém-conhecidos parecia ser recorrente. Esta expressão piorou quando viu alguém carregando o símbolo de sua Aliança em um lugar infantil destes; e o pior: ele achava que viemos negociar a liberdade de homens.

Isto foi o cúmulo do ultraje para Frederick, pois mostrava claramente que ele achava estar fazendo um bom trabalho e que tudo aquilo era justo. Mostrava, também, que eles faziam já pensando em frutos, pois se a frase fora expelida deste jeito – analisando também à sua volta – ele certamente havia ensaiado aquela situação no espelho.

Eles todos não sabiam de nada, não entendiam nunca as coisas e pareciam explicar o que ouviram do jeito que queriam. Nunca havíamos citados os prisioneiros, ambos nem sequer sabiam deles, provavelmente e o capitão também não deveria se importar com a liberdade deles. Era como se o líder deles estivesse sempre falando que alguém iria vir soltá-los e que isto lhes daria dinheiro, pois parece que dinheiro e materiais movem este planeta.

Por estes motivos, permaneceu quieto. Não aguentava mais aquilo, mas não iria estragar a missão.

— Entendo, mas infelizmente não é bem assim que as coisas funcionam. — Ele responde enquanto digita algo em um modelo antigo de technophone. — Entenda: esses três causaram mal aos outros e não podemos deixar que saiam dessa maneira. Temos provas de que eles, por dois anos, abusaram dos cidadães dessa cidade. E é por isso que a Milícia do Povo teve que intervir!

Ele fala firme, mas num tom quase caricato. No fim das contas, é tão plástico e maluco quanto os outros que lentamente cercam a dupla.

— Assembleia! Assembleia! Assembleia! — Exclamam em uníssono conforme se aproximam, quase como um desenho animado.

— AAAAAAAAAAAAASSEMBLEIA! — Ele exclama num tom que atravessa o deserto como um trovão.

Subitamente, um cenário é montado pelos próprios membros do estranho grupo. Todos colaboram para trazer algumas cadeiras altas na qual sentam-se Grusha, Kasri, Tan e, no meio, o tal Paizão. Um palco de madeira que eleva-se alguns poucos metros é levado com a ajuda de dezenas de pessoas, que o posicionam ao lado de Ale'ek e Frederick para que subam neste. Todos os outros rodeiam a assembleia.

— Pois bem, está oficialmente aberta a primeira assembleia da...

— Milícia do Povo! — Exclamam todos juntos.

— Os dois estrangeiros podem começar a argumentação. O que podem oferecer pelos prisioneiros? E, caso achem que devamos soltá-los sem nada em troca, por que deveríamos fazer isso?

Frederick apenas encarava todos com desdém absoluto. Não conseguia levar nada daquilo a sério (e nem deveria), então ficava olhando nos olhos de cada um, desejando amadurecimento e torcendo para que, milagrosamente, em uma dessas encaradas, um deles tenha uma súbita evolução e crie cérebro.

As palavras de Ale'ek parecem despertar alguma gama de razão no homem que os milicianos tanto respeitam. Por um segundo, lembrou-se de quando batia no peito e orgulhava-se por ser um soldado da Aliança como o pirata agora faz. A conduta de Frederick de obedecer as ordens de um superior também o remetem ao tempo em que era um subordinado, até ascender e enfim deixar os batalhões.

Todo esse contraste é visível em seus olhos. Enquanto os milicianos apenas impressionam-se com as palavras fortes de Ale'ek, ele olha-o com a admiração de um novato que observa um veterano, ainda que o caso seja o contrário.

— Eu... compreendo. — Ele responde num murmúrio, contente pela racionalidade de Ale'ek. — Entendam que nem todos os habitantes desse planeta são monstros. Eu e você sabemos que a segurança em Gradopolis é rígida a ponto de encarcerar por anos alguém que rouba uma lata de comida. Muitos dos habitantes de Shinar são fugitivos temerosos, homens que nasceram pobres demais para conseguir uma propriedade ou até mesmo pessoas que perderam tudo em catástrofes e não tiveram para onde ir. Vocês estão na favela da galáxia.

Outros percebem o tom sério do líder. Quando ele acena com a cabeça para Tan, o Haytok já entende o recado e entra nos destroços da nave que o grupo usa de abrigo.

— Já fui como você, rapaz. Não há nada pior do que dedicar a vida para proteger os outros e, já na segunda metade dela, perceber que não fez nada por ninguém. Tudo foi pautado em interesses alheios que no final das contas não importam de nada. — Ele levanta-se da cadeira. O discurso lúcido de Ale'ek fez com que a ideia da Assembleia perdesse seu sentido. —  Isso tudo já existia quando eu cheguei, mas estava desorganizado. Nós estamos aqui para tentar fazer uma diferença, entende? Lutar realmente pelas pessoas e não por ideias. Peço que não nos julgue se também tivermos errado em algum ponto.

Após alguns instantes, o Haytok volta com três soldados fardados da Aliança presos a uma corrente e com as bocas tapadas com fita. São dois homens e uma mulher, e os três parecem bem apesar de ter alguns hematomas no corpo. Como Kisra prometeu, apenas deram uma surra nos malfeitores.

Ficou apenas em silêncio. Sabia que era armação o discurso do capitão, ficando meio-a-meio nos sentimentos.
Sabia que era bom aquela forma de lidar com estas pessoas, mas sabia que era horrível que o capitão soubesse lidar com as pessoas daquele jeito. Mostrando um grau de psicopatia e autocontrole que não ajudava as sociedades, já que a apatia sempre esteve nele.

Contudo, ficou contente que todo mal entendido havia aparentemente acabado.

— Graças a deus apoio! — Gritou a garota no segundo em que sua boca foi liberada. Sua pele clara e seus cabelos negros denunciam a origem Kroyvisiana. — Precisamos sair daqui, esse povo é maluco! Eles nos fizeram assistir espetáculos teatrais ensinando "boas maneiras"... e a atuação era horrível!

— E... a comida... eles comem vermes da terra. Nós comemos vermes da terra! — Exclama o outro, claramente em choque. Este por sua vez ostenta um típico corte militar e um grande símbolo da Aliança, claramente se tratando do típico soldado bonzinho. — Mas o pior eram as crianças. Ficavam fazendo cócegas na gente, mandando dizer que nos arrependemos!

Este aponta para uma dupla de crianças que escondem risadas baixas. Eles aparentam ser irmãos e são os mais jovens membros da Milícia.





O terceiro deles simplesmente mantém-se calado e não parece traumatizado como os outros. Apenas agradece Ale'ek e Frederick com um singelo gesto com a cabeça.

— Sim, são esses. E pelo que nos contaram, os outros fugiram depois de sua captura. Não temos como dar a localização.

— Quer que eu avise Buck que precisamos de uma nave de transporte, capitão? — dizia o homem que já estava preparando a mensagem. Apenas esperava a confirmação ou negação.

Ele olhava as crianças com uma certa curiosidade.

— Contanto que a segurança seja mantida, ninguém vai precisar da gente. Não queremos ser as autoridades, apenas um grupo por quem os desamparados possam clamar. — Ele responde, contente pelas intenções de Ale'ek de melhorar a situação de Shinar. — Mas saiba que esse lugar não é a nossa casa, apenas o lugar que defendemos agora. Se precisarem de nós, estaremos lá.

Ele finaliza com uma frase heroica que incita os outros presentes. A primeira assembleia da Milícia do Povo acabara em paz, e isso era um bom sinal.

— Mas eu não acho que deva deixar o seu colega aqui. Não sei se ele não gosta do que faz ou se não gosta de nós, mas eu reparei em como age e a expressão que faz quando nos vê. — Ele caminha alguns passos em direção a Frederick e olha-o diretamente. — Lembre-se, menino, eu já estive no seu lugar. Pode ser palpite de um soldado aposentado e maluco, mas você não se sente completo. Se quiser conversar, minha ajuda não limita-se a músculos.

— Na verdade, senhor — começava, Frederick, logo que sua postura fora opinada — Não me sinto bem aqui, pois não concordo com a postura de vocês. Suas ações são infantis e de histórias em quadrinhos — ele cruza seus braços, mas termina com um sorriso — Mas, concordo com o capitão. Se eu ficar aqui posso mudar este pensamento infantil de vocês e ajudar de vez este planeta.

Ele olhava em volta, visualizando cada um e cada ação que eles estavam fazendo.

— A não ser que vocês não estejam com vontade de mudar e achem que agora está ótimo. Mas, não digo isso por maldade — ele erguia os braços, descruzando-os, tentando gestos amigáveis — É apenas porque vejo tantos rostos felizes por aqui, todos parecem estar se divertindo... E isso com certeza não devia acontecer — seu tom diminuía na última frase. Queria que apenas o líder escutasse, já que isto poderia afetar sua amizade com outros que só queriam se divertir.

Paizão dá um riso leve, disfarçado parcialmente pela barba densa e emaranhada de um homem que já não se cuida faz um tempo. O sorriso amarelo é sincero, e é visível que seu olhar carrega um brilho que Frederick há muito não vê em soldados em atividade. Ainda menos na idade daquele homem.

— Você é muito pretensioso ao afirmar com certeza que seremos nós que aprenderemos contigo. Talvez tenhamos mais a te ensinar do que você imagina. Lembre-se de valorizar o sábio que faz, pois o sábio que apenas pensa é muito pior do que qualquer ignorante. —  Ele dá um tapinha em seu ombro depois do pensamento. —  Não julgue nossos métodos e sim nossos objetivos. Essas pessoas não precisam de um militar e sim de um amigo.

Com o pedido de Ale'ek, um motorista põe-se a postos em um dos dois carros dos que os milicianos possuem. Aguardando que decidam partir, ele mantém-se á postos para levá-los de volta até Shinar.

— Se quiser ficar, qualquer um é bem-vindo. Pense na sua vocação e não no seu dever, porquê você não vai tirar o sorriso dessas pessoas no meu turno. Se precisar, eu coloco a etiqueta com meu nome de volta na farda e considero isso uma ordem.

— O senhor é realmente uma criança com barba... Tem que entender que se você não consegue pegar uma cabra preta de dia, imagine de noite — dizia ele, devolvendo os ditados, contudo os seus eram mais regionais do que os dele — Tenta enfiar ditado sobre sábios em mim, mas quer ser sábio contra o que a própria história ensina. Não é o seu método feliz que trará felicidade; a realidade está longe disso.

Ele dava alguns passos em direção a nave.

— Tenho certeza que vocês irão me ensinar coisas novas; sem dúvidas nenhuma — dizia ele, mudando seu tom para menos fraternal, parecia mais um soldado — mas tenho certeza, também, que quem irá ensinar sobre reerguimento de sociedade aqui sou eu. Se quiser que eu fique, mesmo que seja pra tentar me provar o contrário de minhas falas, é só avisar, pois, não me importo com sua patente. Para mim, ela é somente um papel que você escolhe quando por, pelo jeito.

Ele então olhava para todos que pudessem estar ouvindo, já que, aparentemente, a conversa havia crescido e abrangido um pouco. Muitos podiam, também, ficar curiosos da forma confrontante que Frederick lidava com o líder local e isto, em organizações como esta, sempre chama atenção.

— Me desculpem, todos vocês, não quero ser grosseiro com ninguém — ele dizia, fechando seus olhos e pondo suas mãos atrás de suas costas; denotando confiança, já que abria todos os seus pontos fracos.

O velho desfaz temporariamente o sorriso. O que Frederick diz não só o deixa pensativo, mas também um pouco angustiado. Em tanto tempo vivendo em harmonia com aqueles novos "filhos", desacostumou-se a ser tratado daquela maneira. De uma hora para a outra, suas saudades do tempo de soldado se foram e lembrou-se do porquê abandonou a profissão.

— Talvez eu seja uma criança com barba sim, rapaz. Mas eu me orgulho disso pois não perdi o sonho. — Ele afasta-se dessa fez e volta a colocar as mãos acima do rifle travado preso a seu corpo. — Não vejo brilho em você. Tome cuidado com a maneira que age, porquê você parece não compactuar comigo e ainda assim trilha o mesmo caminho que me levou até aqui.

Uma mensagem no dispositivo de Ale'ek enviada através da inteligência artificial SIDA revela coordenadas nos arredores de Shinar, provavelmente de sua nave de suporte. Os milicianos unem-se próximos ao carro que deve levar a dupla de soldados para observar a decisão que Frederick tomará.

— O mais óbvio aqui é que não perdeu o sonho, senhor. Mas, me desculpe dizer tais pesadas palavras sem nos conhecermos. Me proponho a ficar, assim poderemos entender um ao outro melhor e ver quem é o adolescente que acha que tudo gira em volta de si, haha! O que acha? — ele estendia sua mão com um sorriso.

Internamente, Frederick ficara magoado com o jeito que agiu. Não parecia ele, parecia que algo o havia influenciado mais do que ele queria. Poderia ser, com muitos motivos, a história de seu país. Mas, também, podia haver, minimamente uma correlação indireta com a de seu irmão. Já que, seu consanguíneo sempre seguiu seus sonhos, agia de forma infantil, com sorriso no rosto e de uma hora para outra, desapareceu. Parece que, ver alguém com um sorriso na cara e um pensamento adverso à Frederick lhe encheu a cabeça de memórias que não são coloridas.
No fim, enquanto mantinha seu braço esticado para um cumprimento, percebeu que se ficasse naquele planeta, teria um tempo para pesquisar sobre se irmão e verificar em câmeras da SIDA se ele havia aparecido em algum lugar. Não teve tempo, nem cabeça, para fazer isto quando foi livre.

Paizão aceita o cumprimento de Frederick de seu próprio jeito. Contrariando uma vez mais a sabedoria de um idoso que vinha mostrando até então, puxa a mão do leonês e envolve-o num forte abraço contra seu corpo truculento.

— É isso aí, menino. Eu acho que tomou a decisão certa. — Ele sorri enquanto os outros unem-se ao redor de Frederick. — E então, ficará conosco ou em Shinar? Como os senhores ali falaram, a comida não é muito boa e o ambiente não é muito confortável; mas cuidamos um do outro.

Ale'ek parte, deixando o terráqueo sozinho com as poucas dezenas de habitantes daquele lugar que unem-se todos em um abraço conjunto e talvez até sufocante ao redor de Frederick. Podem ser lunáticos, mas definitivamente são felizes.